9 de maio de 2012

"Pedaços de mim, Pedaços de Nós" - Carta IV



Minha eterna amada,

Esta noite fiz a tua sobremesa favorita, tarte de natas. Coloco no teu lugar uma fatia. A cadeira está vazia, mas ela é tua. A noite é linda, mas não tem Lua. A dor é suportável, mas é crua. Fecho os olhos, mas a dor continua. Dirijo-me para o quarto, imagino-te ali nua. Tento te abraçar, mas a tua imagem dissipa-se, recua. Choro, vou jogar-me para a rua. Percorro assim algumas das ruas de Machico, que um dia também percorremos. A minha mente vagueia, os meus pensamentos vão e voltam, amassam-se, e o meu corpo não consegue compreender.
Sinto-me sufocado com a tua falta. Preciso dizer-te o que penso e sinto. Como se ainda estivesses aqui, no momento derradeiro da tua ida. Mas minha voz se descinge, e grito um silêncio ensurdecedor. Estou com uma raiva imensa da Morte! Se pudesse, mataria a Morte numa morte mortificante. Estou perdido dentro de mim mesmo, num labirinto infinito de saudades.
Lembrando-me de ti, do tempo em que estavas ao meu lado. Mas quando recordo esses tempos, a saudade magoa contraindo o meu peito, como uma ferida aberta que nunca se restabelecerá. Lembro meticulosamente as brincadeiras, as carícias, as longas noites de amor puro, a ternura, o respeito, a compreensão, a amizade, e aquele muito restante que jamais voltará. Lembro-me do teu jeito de me tornar menino, aquelas maluquices, as cócegas, as sessões de cinema em casa, aquele delicioso gelado, que na tua pele mais delicioso ficava. Recordo-me dos momentos de entrega total, sem vergonha ou pudor, onde nos desnudamos fervorosamente de corpo e alma, como se estivéssemos a arder, correndo desesperadamente para a água do mar. E ardíamos. Ardíamos de sentimentos, de expressões corporalmente irrepreensíveis de um grande e raro amor.
Hoje arde a dor, descontroladamente, com este coração transbordando de saudades, com uma febre do desejo não saciado, sabendo que no dia em que partiste a vida deixou de fazer sentido. E ainda sinto tuas mãos a percorrer o meu corpo, ainda sinto o teu respirar intenso nos teus auges de prazer, ainda sinto que poderás vir novamente me fazer feliz.
E chamam-me louco. Temo que a verdade seja superior a mim, à minha capacidade de resistir-lhe. Receio não ser capaz de querer acordar um dia, para não sofrer com este vazio insustentável no meu ser. Às vezes gostava de não me lembrar de nada, pois quanto mais me lembro, mais sofro. E quanto mais sofro, menos vontade tenho de viver. E quanto menos vontade de viver, mais desejo morrer para ir ter contigo. E então volto a querer me lembrar de tudo! Os dias que teimosamente apressavam-se a passar quando eu tinha-te junto a mim. As noites que percorremos distâncias longas que ficavam curtas, pelo que poderia ser uma passadeira rolante, o amor. Ele encaminhava-nos pelo horizonte. E quantas vezes vimos o nascer do Sol, erguendo-se lentamente para nos iluminar?
Recordo-me como se fosse hoje aquele amanhecer inesquecível junto ao farol de São Roque, quando os primeiros raios desfilavam na tua cara linda e tu sorrias e me dizias: O Sol já nasceu, e mais um dia o meu amor por ti cresceu. Mas por que o Sol ainda nasce, se a minha vida sem ti é noite? Se tudo hoje é negro, ou uma cor qualquer vestida de preto? Se o Sol nasce e já não me aquece? Se eu procuro-te e já não te encontro? Se eu vivo e já não sinto o sabor da vida? Mas digo-te a ti que essas tuas palavras são hoje verdades do meu coração para o teu, esteja ele onde estiver...

  O Sol continua a nascer e o meu amor por ti continua a crescer.
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 * Carta 4 de 7 de "Pedaços de mim, Pedaços de Nós" - 3º premiado do VI Concurso Literário Francisco Álvares de Nóbrega - Camões Pequeno

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