4 de abril de 2012

"Pedaços de mim, Pedaços de Nós" - Carta III


  
Minha doce borboleta,

Hoje beijo o silêncio perfumado de ti e suspiro alegremente. Não estás comigo, mas consigo sentir-te. E em todas as nossas recordações, mordo-me de saudades, em lágrimas decadentes, esquecendo-me quem sou. Esquecendo-me de algo chamado futuro. Esquecendo-me daquilo que preenchia contigo o meu coração; uma menina dócil, brincando com uma bonequinha tão querida quanto ela, uma menina que eu chamava Felicidade. Essa menina existia contigo. Agora não a vejo, vejo apenas a boneca ali abandonada no chão e ao seu lado, sorrindo, uma bruxa chamada Tristeza, ao lado dum monstro chamado Sofrimento.
Recordo com esse monstro a última vez que estivemos juntos, e é uma dor que atravessa bem fundo a planície dos meus sonhos. Tu estavas aqui, fremente e nua, deitada bem junto a mim. Tuas mãos fechadas, de medo, de incertezas abriram-se e dirigiram-se para a minha face. Tremias, e eu é que sentia medo. Acariciaste-me, arrepiando cada pedaço de pele do meu vulnerável corpo. Lá fora começara a chover. E no tilintar dos pingos de chuva que para lá da vidraça ecoavam, beijaste-me num momento tão de si saciável, com uma ternura que só tu eras capaz de transmitir. Teus lábios doces, que ainda hoje guardo o sabor, percorriam assim as ruas do meu corpo, como se eu me sentisse numa moldura de um génio pintor.
Queria mais, queria muito mais. Queria intensificar o sentimento que surgia no meu coração. Massajei teu pescoço, conseguindo sentir os arrepios que se instalavam em ti, e deixei as minhas mãos correrem ao sabor daquela profanada vontade, […] culminada no silêncio rangente dos nossos corpos suados, enfim, já destinados ao descanso, saboreando o cúmplice momento. E ficámos aqui, nas carícias que tanto adorávamos, apenas com um lençol sobre nós olhando o coração que um dia desenhei no tecto deste quarto. O quarto até podia ser pequeno, mas o nosso amor era tão grande! Era e sempre será. Podes estar onde estiveres, posso nunca mais te olhar, te tocar, mas meu coração nunca deixará de sentir o sentimento que tão deliciosamente nasceu. E talvez seja por isso que sinto-me a viver num mundo que não é o meu, feito de personagens de um filme onde não me encontro no guião.
Dizem-me que tenho de me conformar, que tenho de deixar de pensar sempre em ti, mas não consigo pois é impossível esquecer-te. É impossível esquecer uma vida que criámos, insubstituível por qualquer outra escolha humana possível, porque a nossa vida era mais que humana, era transcendental, puramente divina.
Hoje deves estar com os anjos… Falando de mim, das loucuras que cometemos como dois parvos… Pois, não dizem que o amor faz as pessoas parvas? É verdade. Fomos parvos desde que decidimos partilhar a nossa vida indefinidamente. Uma vida plena de afinidades, como se tivéssemos um idioma só nosso, feito de expressões corporais. Havia uma cumplicidade que lampejava, mesmo que não estivéssemos perto um do outro, mesmo que nossos olhos não se cruzassem. Completavas-me em absoluto. Parecia tudo perfeito. Desde o acordar até ao adormecer… Nas pequenas e nas grandes coisas…
Lembro-me das manhãs maravilhosas em que os raios do Sol rompiam pelo quarto adentro, quando te levava o pequeno-almoço à cama. Recordo-me das nossas birras, que rapidamente desapareciam, dos devaneios na piscina, das confusões na cozinha, dos caprichos na cama, até das “secas” que, sem querer, por vezes me davas… Tudo, tudo completava-me.
Contigo não havia gesto inacabado, não havia história sem fim, nem Sol escondido para um lindo jasmim.
Contigo… Sorria.
E como gostava de viver assim!
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* Carta 3 de 7 de "Pedaços de Mim, Pedaços de Nós" - 3º premiado do VI Concurso Literário Francisco Álvares de Nóbrega - Camões Pequeno

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